O MULTILINGUISMO NO MUNDO DAS MURALHAS

Autor: Walter Paulo Sabella Procurador de Justiça, com licenciatura plena em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Membro da Academia Brasileira de Direito Criminal. Meu Pai.

Originalmente publicado no dia 29/09/2017 no site da Associação Paulista do Ministério Público.


O MULTILINGUISMO NO MUNDO DAS MURALHAS

Walter Paulo Sabella*                                     

(Aos tradutores e intérpretes, em especial à tradutora Melissa Sabella Harkin)

                                                                      

Esta crônica homenageia os tradutores e intérpretes, cujo trabalho religa os fragmentos de um mundo desde sempre em divisão, como se não bastassem as separações naturalmente oriundas de oceanos e desertos.

As convenções humanas, na permanente busca de preservar os valores que orientam a marcha da civilização, prestigiam instituições e classes profissionais dedicando-lhes dias específicos do calendário, surgindo, então, os chamados ‘dias internacionais’, como o da mulher, da criança, da biodiversidade, em mera exemplificação. Temos, inclusive, o Dia Internacional da Paz, instituído pela ONU desde 1981 e celebrado em 21 de setembro. Pena que para a paz só se tenha reservado, oficialmente, um único dia ao longo de cada ano! Mais triste, ainda, que mesmo nesse dia único alguns ignorem o cessar-fogo e se abstenham de declarar passageira trégua. Entre a aurora e o crepúsculo desse dia solitário do calendário gregoriano, homens acordam matando e adormecem morrendo. De qualquer modo, conquanto profundamente desolador, não causa perplexidade, pois dão curso às guerras em outros dias de inegável força simbólica, como o Natal e o Ano Novo. “Merry Christmas and happy new year!”– ecoa do lodaçal das bocas, enquanto os canhões retumbam seu fragor contínuo.

São vários, úteis e justos os dias internacionais dedicados a pessoas físicas ou jurídicas, categorias profissionais e segmentos institucionais, pois estimulam a gratidão aos que atuam em prol do bem-estar coletivo, avivam a memória sobre a relevância de seus exemplos pessoais para a interação social nas encruzilhadas planetárias e, sobretudo, despertam a consciência de que a tudo há de ser sobreposta a vocação gregária e finalisticamente construtiva que identifica e diferencia os seres humanos como atores do bem.

Assim, 30 de setembro é o Dia Internacional dos Tradutores e Intérpretes, feita a escolha, em 1991, pela Federação Internacional de Tradutores (FIT), porque nessa data, no ano 420 (alguns afirmam 419), morreu o sábio que passou à história como São Jerônimo, tradutor da Bíblia do grego antigo e do hebraico para o latim, versão denominada Vulgata, síntese da expressão vulgata versio ou vulgata lectio, destinada à disseminação dos preceitos cristãos, em latim cotidiano, ao alcance da compreensão do povo (diverso da ‘língua culta’ de Cícero), por encomenda do bispo Dâmaso I. Desse simples dado histórico extrai-se a importância da atividade objeto deste escrito, que passa ao largo de aspectos técnicos, por ser uma homenagem, como dito antes, não um estudo.

Conquanto dispensável, e mesmo imprópria, a abordagem de tecnicismos inerentes ao tema, como questões conceituais de língua-fonte e língua-alvo, regramentos ético-comportamentais na tradução e na interpretação, dificuldades próprias das traduções técnicas, científicas, históricas, as ditas literárias (por alguns), poéticas, quanto às estas últimas por conta de metrificação, ritmo, rima, cesuras, metáforas e outras figuras de linguagem, percalços próprios das gírias, expressões dialetais ou idiomáticas, regionalismos, desafios atinentes à preservação da tonicidade silábica nas composições musicais e tantos outros, afigura-se propícia a ocasião para algumas considerações de alcance mais genérico, com a precípua finalidade de realçar o caráter vital, para a civilização, desse ofício que exige estudo, concentração, dedicação, talento e sensibilidade. Traduzir é reescrever. E de tal modo que os novos significantes, postos em cotejo com os originais, não correspondam a significados equivocados, usando aqui a terminologia de Ferdinand de Saussure para aludir aos elementos compositivos do signo linguístico.

Tão difícil é o encargo que, em língua italiana, há um jogo de palavras muito conhecido no mundo dos tradutores, que diz “traduttore, traditore”, (tradutor, traidor- em português), pelo qual se passa a ideia de que o tradutor haveria de cometer traição ao texto original para poder reescrevê-lo na língua objetivada.

Retomando as considerações há pouco aludidas como oportunas, para que o tributo prestado aos tradutores se faça à altura de seu justo mérito, seja dito, desde logo, que a pós-modernidade se apresenta como um grande baú repleto de paradoxos, alguns dos quais causam estranheza a todos e, aos tradutores, em especial, acrescem árduas circunstâncias de trabalho.

Como é sabido, as línguas nascem, vivem e morrem, daí os conceitos de língua viva (instrumentos diários de comunicação, em plena prática interativa),  mortas (não faladas, mas remanescentes em documentos) e extintas (desaparecidas, sem registro documental, como o indo-europeu). Estas, as línguas ágrafas ou não escritas. Os romanos legaram à posteridade um axioma preciso a respeito: verba volant sed scripta manent (as palavras faladas voam, mas as escritas permanecem). Em sua Gramática Histórica, Ismael de Lima Coutinho realizou aprofundados estudos sobre o tema.

Dispensadas mais alusões quanto à morte das línguas, bastante seja lembrar que morrem não só pelo desaparecimento da comunidade falante como, ainda, pela opressão modificadora de povos invasores, dando origem a outras línguas,  pela supremacia econômica de outras nações, cuja influenciação provoca uma espécie de despejamento de substratos linguísticos novos. Assim foi com o etrusco, na Itália; com cerca de duzentos e cinquenta idiomas na Austrália, a partir da chegada dos ingleses; com línguas célticas, com idiomas germânicos. Quando os portugueses ancoraram suas caravelas nas costas de Porto Seguro, no Brasil eram falados duzentos e vinte idiomas; hoje não passam de cento e sessenta, e quase todos correm risco de extinção, com rapidez, tudo dependendo do número de falantes, da celeridade com que os desmatamentos avançam, e de outras variáveis. As previsões mais pessimistas estimam que nos próximos cem anos poderão desaparecer entre quarenta e noventa por cento das seis mil línguas existentes atualmente. Instituições sensíveis à importância do tema têm tido iniciativas dignas de registro, como a União Europeia, que fixou a celebração do Dia Europeu das Línguas, em 26 de setembro de cada ano, visando incentivar o aprendizado, a realização pessoal, o aperfeiçoamento profissional e a participação nas sociedades democráticas. A UNESCO tem projetos preservacionistas em andamento, e o Google, desde 2012, dá prossecução ao projeto de documentar cerca de três mil línguas em risco de serem extintas, abrindo a quem queira colaborar o site “Idiomas em Risco”, no qual podem ser consignados documentos, áudios e vídeos relativos às línguas ameaçadas.

As línguas mais faladas em nossos dias são o chinês mandarim, inglês, espanhol, português, híndi/urdu, russo, árabe, bengali, indonésio e japonês, registrando-se o significativo fenômeno de que tais ‘línguas fortes’  progressivamente consolidam sua prevalência, determinando o enfraquecimento dos ramos idiomáticos e dos esgalhos dialetais das localidades em que se afirmam, do que constitui exemplo a substituição dos dialetos filipinos pelo inglês.

Não pode ser olvidado, ademais, que os fatos se desencadeiam com velocidade vertiginosa, como resposta às exigências da contemporaneidade, de que resulta, no campo linguístico, com igual velocidade, o surgimento de vocábulos novos, o desuso de outros aparentemente sedimentados na fala cotidiana, bem como a interpenetração de substratos de léxicos estranhos entre si, gerando hibridismos em ritmo célere.

Paralelamente, as urgências de demanda na sociedade de consumo contribuem para acentuar o processo de supersimplificação das línguas, com frequente substituição de palavras por símbolos ou imagens, figuras ou desenhos, novos ícones e ferramentas comunicacionais,  em atendimento às necessidades comprimidas entre termos temporais menos elásticos. Na era da comunicação audiovisual, da instantaneidade na circulação das mensagens, da competitividade em desenfreio nos mercados, mecanismos inéditos vem gerando alterações sensíveis no campo da linguagem. Aos tradutores não se exige a transposição de conteúdos, mas a interpretação de novos códigos imagéticos amalgamados às estruturas da língua. Na propaganda, especialmente em rótulos de produtos, estratagemas eticamente reprováveis confundem a boa-fé dos consumidores,   embaraçam a fiscalização dos órgãos competentes e criam empecilhos à construção interpretativa dos tradutores, de que são exemplos, variações nitidamente dolosas das dimensões de frases informativas, atribuindo-se tipologia minúscula às informações obrigatórias desfavoráveis à venda, posicionamentos variáveis dos dados informativos a respeito do produto, ora em linha vertical, ora horizontal, criações discricionárias de símbolos de sentido não claramente reconhecível.

E no cenário assim permissivo, hermético ao controle dos órgãos de inspeção, a massa de produtos industriais circula através das fronteiras e das línguas, pelas vias da importação/exportação, aparecendo nas gôndolas e nas prateleiras.

Por paradoxal que possa ser, é nesse universo de permissividade para com os interesses da mercancia que países erguem muralhas e cercas em suas fronteiras, guarnecendo-as de sentinelas, fios elétricos, arames cortantes e cães de guarda, tudo em meio a ruidosa propaganda de deportação e outras sanções para os violadores dos muros que impõem o isolamento, o desterro e a incomunicabilidade.

A aldeia global de Mc Luhan também se apresenta como um cipoal de grades e muralhas, em alguns casos não entre países, mas entre segmentos de estratificação socioeconômica de um mesmo país. A contenção de massas migratórias opera pró- defesa dos interesses nacionais e também pró-isolamento de povos e línguas. Assim, um dos fatores do enriquecimento linguístico que é o contato entre falantes de expressões linguísticas diversas tem o processo natural obstruído a fórceps, pelos paredões e defensas.

A escolha do título atribuído a esta crônica não deriva do acaso, de acidentalidades, tampouco da preferência pelo resultado fonético que os vocábulos componentes ensejam, por força da repetição fonêmica no início de três dos signos linguísticos que o compõem. Obedece a um propósito implícito. A aliteração, como figura de linguagem, pode agravar, em dados casos, as dificuldades do tradutor. O título é fruto da intencionalidade, do dolo específico de apontar, no plano subliminar, os percalços crescentemente detectados no trabalho de tradutores e intérpretes, personagens de importância crucial no mundo da globalização, pouco parecido, quanto ao processo fenomênico, com o mundo que preexistia ao seu rápido surgimento.

Eis porque, acima, foi dito que a pós-modernidade, para os tradutores, apresenta-se como um baú de paradoxos. E cabe acrescentar: de desafios. Fatos diuturnos, no terreno fértil da comunicação de massas, exigem dos profissionais da tradução reciclagem permanente e conexão atenta com a fenomenologia social, notadamente se atuam nos campos das traduções técnicas e científicas. Como radares, hão de vigiar o tempo/espaço, cenário de ocorrências transformadoras da língua em ebulição incessante. Até dicionaristas de rígida vigilância às regras puristas das línguas, atentos aos parâmetros lexicais, mostram-se mais liberais à incorporação de lexemas novos, mais complacentes com signos que, noutros tempos, seriam repelidos como neologismos inaceitáveis.

As línguas são repositórios da história da humanidade, nas quais se registram as conquistas do espírito e da inteligência, nas quais se gravam séculos de jornadas épicas dos povos sobre a terra, nas quais se documentam os achados, as descobertas, as invenções do gênio humano, nas quais se inscrevem as experiências, as permutas, as vitórias, as derrotas, que envolveram comunidades e nações ao longo dos tempos, nas quais se expressam sentimentos, valores, princípios, pelos quais as almas se incandesceram e se lançaram a rijos combates ou fraternas alianças, permeados de êxitos gloriosos ou fracassos abissais.  As línguas albergam mundos, existentes ou existidos, reais ou imaginários; abrigam sonhos, utopias, ambições, crenças, pelos quais guerreiros se trucidaram e mártires se ofereceram em holocausto, guiados por suas retinas visionárias. Nas línguas, dormem deuses, heróis, lendas e mitos, cujas epopeias foram escritas a sangue e desprendimento. Nas línguas, habita o passado, fala o presente, sonha o futuro.

Todos esses tesouros exuberantes da epopeia humana, alguns portentosos, outros trágicos, alguns insepultos, outros lançados nas profundezas dos vocábulos em desuso, são permutados entre os povos de idiomas diversos, entre gerações que falam léxicos modificados, não raro completamente desconhecidos por uns e outros. E quem transita entre os universos culturais de falares diversos, levando a uns e outros esses produtos do tempo e das gerações, são os tradutores, verdadeiras pontes que se estendem sobre os abismos, se alongam sobre imensidões desérticas ou vastidões oceânicas, realizando a entrega generosa do conhecimento, a dádiva da cultura em compartilhamento, sem restrições de qualquer ordem ou credo.

É nas línguas que reside o testemunho do tempo, e os tradutores são as vozes que tornam audíveis os relatos dos dias que se foram, das forças que impulsionaram os homens, dos percalços que os detiveram, das civilizações que pereceram ou emergiram no teatro multifário e complexo do planeta.

Os intérpretes produzem o mágico instante da aproximação e do entendimento, tornando possível que criaturas, grupos, multidões, que jamais se tenham visto ou ouvido, que se valem de códigos linguísticos completamente estranhos entre si, repentinamente comecem a conhecer os sentimentos, as ideias, os pensamentos que os animam.

Quando um sistema linguístico se extingue, o mundo se torna mais pobre, a grande arca do conhecimento se vê pilhada, uma valiosa herança cultural é dissipada, séculos ou milênios de esforços humanos se evolam nos ares. Essa perda não é estimável.

Lícito seja fixar esta simetria: se o vocábulo religião, guardando conexões etimológicas com religare, serve para expressar, de um prisma teleológico, o liame do homem com o plano extrafísico, o lexema tradução, conquanto relacionado a étimo  diverso –traducere, ou ‘conduzir além’- igualmente de um ângulo teleológico, exprime o liame do homem com o homem, de povos com povos, descerrando os portais para o caldeamento cultural das etnias. Os tradutores e os intérpretes tornam real a utopia do encontro de todas as humanidades, provindas das encruzilhadas de eras e nações.


*O autor é jurista, professor, poeta e memorialista, com licenciatura plena em Letras (Língua Portuguesa e Literatura Brasileira), atuou no radiojornalismo e na imprensa escrita. É membro da Academia Brasileira de Direito Criminal, Prêmio Nacional de Poesia de 1971, do Instituto Nacional do Livro, e pai da tradutora Melissa Sabella Harkin.

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