61952_464011146966_4570282_nMeu pai e eu sempre compartilhamos três paixões: cultura, história e línguas estrangeiras. Tentamos compartilhar uma quarta – o Direito, mas mesmo tendo me formado na área, eu acabei seguindo pela tradução.

Lembro-me, ainda pequena, de meu pai incentivando meus estudos linguísticos. Eu passava horas na frente do espelho tentando imitar sotaques e repetia as frases dos meus atores favoritos em seus idiomas nativos.

O amor por línguas certamente vem dele, mas a paixão por transpor os obstáculos culturais e linguísticos que, sem a tradução, poderiam nos separar (ainda mais), veio de cada vez que eu ajudei alguém a se comunicar com um estrangeiro, traduzi textos para amigos e, finalmente, percebi que essa era a minha vocação, o meu chamado.

Quando decidi me dedicar integralmente à tradução, meu pai ficou preocupado. Lá se foram cinco anos de Direito, dois anos como estagiária concursada do Ministério Público do Estado de São Paulo e três anos de experiência na prática jurídica. Mal sabia ele (e eu também), que o Direito continuaria presente na minha vida como tradutora.

Ao longo dos anos, meu pai foi aprendendo comigo e eu continuei aprendendo com ele.

Neste post, meu pai fala das paixões que compartilhamos, do curso de tradução que fez este ano para melhor compreender minha profissão e como ele vê a importância da tradução, como diriam os Titãs, “desde os primórdios até hoje em dia”.

Enjoy!


O universo das palavras sempre exerceu fascínio sobre mim, desde os primeiros anos de vida. A tal ponto que, numa retrospectiva do tempo vivido, constato que em quase todas as trilhas profissionais percorridas tive a palavra por instrumento fundamental: o jornalismo, a radiodifusão, a docência, os embates no tribunal do júri. Com licenciatura plena nas áreas de Letras e Ciências Jurídicas e Sociais, vejo a palavra como uma dádiva concedida à espécie humana, ainda que nem sempre a consciência disso esteja presente no uso que dela é feito.

Cada signo linguístico pronunciado ou escrito em qualquer parte da terra é resultante de um longo processo de experiências do homem no tempo. Nesse processo convergem fatores plúrimos: étnicos, sociológicos, climáticos, econômicos, religiosos, consuetudinários. Como criatura gregária, sujeita às circunstâncias e contingências próprias da cena planetária, o homem desenvolveu os idiomas, códigos mágicos de construção e expressão do conhecimento. O próprio pensamento se estrutura na palavra e constitui seu conteúdo. Como propusera Ferdinand de Saussure, ela, a palavra, é a forma e o fundo, o significante e o significado.

Seduzido, já na infância, por esse cosmo dinâmico e múltiplo de sons e sinais gráficos, chego ao outono da existência conhecendo algo de alguns idiomas, com a convicção crítica de que meus conhecimentos parcos, fragmentários, paupérrimos, nada têm a ver com o que costumam chamar de poliglota. Bem por isso, recorri à ambiguidade da expressão “conhecendo algo”.

E por conta do estado de sedução que persevera, as limitações outonais da vida não me impediram de concluir, recentemente, um curso de tradução, da Cardiff University, de Walles: Working with Translation-Theory and Practice. Essa nova incursão nos vastos domínios da palavra foi, também, motivada pelo interesse em conhecer melhor a atividade profissional de minha filha, Melissa Sabella Harkin, radicada nos Estados Unidos, tradutora há mais de uma década.

Concluído o curso, honrou-me ela com o convite para ser o articulista deste mês, em seu blog, analisando a importância da tradução no mundo atual.

A contemporaneidade é multilíngue. Nos mesmos espaços nacionais coexistem línguas várias, não apenas os idiomas nativos desses solos. Dessa premissa inafastável emerge o papel crucial da tradução na interação dos povos.

No mundo transnacional dos nossos dias, as fronteiras constitucionais já não resistem à vertiginosa e invasiva velocidade dos fatos sociais do cotidiano. Migrações em massa, ampliações corporativas tentaculares, produções intelectuais e artísticas em escalas macro-estatísticas, dentre outros tantos fenômenos, erigem a tradução à categoria de atividade fundamental da civilização. Hoje, mais que em qualquer outro tempo.

Os intérpretes estão presentes nos trágicos campos de refugiados, nos teatros de operações bélicas, nas repartições alfandegárias e policiais, nos hospitais e consultórios, nos museus, nas exposições, nas conferências, nos simpósios das universidades, nas plenárias das Nações Unidas, nos navios que cruzam os oceanos, nas aeronaves que vencem os espaços.

Os tradutores, no recolhimento de seus escritórios, na solidão de seus lares, no recesso das bibliotecas, nos ambientes de trabalho compartilhados, nas salas de atividades acadêmicas, destinam fatigantes e concentradas horas à universalização do conhecimento, tornando possíveis a conciliação dos interesses, a celebração dos tratados internacionais, os pactos empresariais, as campanhas humanitárias, a difusão das conquistas técnicas e científicas, o acesso às criações estéticas dos gênios literários.

Que ninguém suponha, em visão leviana e superficial, que tudo se resolva, de modo simplista, na transferência de significados dos vocábulos do idioma-fonte para o idioma-alvo. A tradução vai muito além. Rompe a estreiteza dessa postura crítica para situar-se, na verdade, como estrada multidirecional de permutas culturais na mais cósmica acepção que esta figura conceitual possa ostentar.

Com efeito, quem traduz vê-se às voltas com o encargo de trasladar valores imateriais, semiológicos, históricos, de um universo sociológico para outro, por vezes de um gueto territorial, isolado por barreiras comunicacionais, para outro. Quem interpreta, de seu turno, possibilitando as comunicações orais entre falantes de realidades linguísticas diversas, interpõe-se na linha em que operam pressões como o medo, a insegurança, as desavenças étnicas, as suscetibilidades de gênero, crença ou ideologia.

Os que laboram nas traduções técnicas ou científicas necessitam incursionar por campos do conhecimento não raro alheios às suas experiências diuturnas, realizando consultas a especialistas das áreas estranhas. E os que se entregam às traduções literárias, com frequência, carecem de fatigantes pesquisas para decifração de códigos dialetais ou enigmáticos regionalismos.

Quanto mais antigo o texto da língua-fonte a ser vertido para o idioma-alvo, mais exaustiva poderá ser a pesquisa no campo da gramática diacrônica, visto que as línguas, no escoar dos tempos, passam por variações sintáticas e polissêmicas. Mais que isso, as línguas, à semelhança dos homens, nascem, vivem e morrem. Se a tradução a ser feita tiver como foco o texto poético, agravam-se as dificuldades, por força das questões de métrica, ritmo, cesuras, metáforas, preservação dos traços estilísticos. Tratando-se de canções, sobrevém a necessidade de adaptação léxica à duração dos compassos, compelindo o tradutor a tornar-se, mais que em qualquer outro campo de trabalho, um recriador. Nem se perca de vista que o mercado musical -chamemos assim- também se tornou transnacional. Nem haveria de ser diferente, num panorama mundial de economia multinacional, em que se relativizou o próprio conceito de soberania das nações.

Por fim, tratando-se de textos históricos, o tradutor se põe a pisar a terra esquecida das eras para transportar, do passado ao presente, os universos culturais dos que, antes de nós, noutros momentos do calendário dos homens, desfrutaram a dádiva da palavra. Afiguram-se, assim, viajores do tempo, fazendo ecoar, nos dias contemporâneos, nos sensores profundos da memória humana, as vozes do passado.

O tradutor executa um trabalho único: ultrapassa as fronteiras territoriais, regressa nos caminhos do tempo, desvenda as diferenças enigmáticas da fonética e da escrita e proporciona aos homens a maravilhosa impressão de que todos falamos uma só língua. Trata-se de atividade tão relevante que a marcha evolutiva, sem ela, não seria a mesma.

Assim, em exatas mil palavras, como me foi antecipadamente proposto, eis aí, nesse calculado resumo, minhas impressões a respeito da importância da tradução nos dias atuais.


FotoWalter Paulo Sabella – jurista, professor, poeta e memorialista, com licenciatura plena em Letras (Língua Portuguesa e Literatura Brasileira), é membro da Academia Brasileira de Direito Criminal e Prêmio Nacional de Poesia de 1971, do Instituto Nacional do Livro. Meu pai!